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quinta-feira, 4 de novembro de 2010

O Poço


Dentro de um poço antigo, há um segredo completamente coberto de larvas e sanguessugas.
Julieta, uma camponesa de olhos claros, cabelos longos e loiros, irlandesa nata, desde pequena fazia uso deste poço, cavado pelo seu tri tataravô, que havia saído de Galway, rumo à cidade de Lisboa, com fortes acusações de anti-patriotismo. Levou consigo sua esposa, veterana em uma fábrica de tecidos e costuras, que abominava qualquer demonstração de feminismo, visando expor somente a imagem de durona e de mulher introspectiva.
Sair de uma cidade populosa para outra que ainda estava em fase de crescimento, parecia ser uma ótima opção, pois tudo em Lisboa era muito calmo e o marasmo de conviver com a rotina do campo fez com que a família aumentasse, tendo o casal nove filhos, que mais tarde seguiram em rumos opostos, sem nunca mais dar notícias.
Entretanto, a nora, casada com o filho caçula dos dois, engravidou aos dezessete e entrou em óbito no dia do parto. Catorze dias depois, correu pela cidade a notícia de que a criança não era fruto da relação matrimonial, sendo entregue aos cuidados do casal, pelas mãos do próprio filho, que, para fugir da vergonha decorrente do boato, resolveu se alistar na junta militar do país de origem de seus pais, para nunca mais ter que retornar aquela cidade que lhe trouxera tanto desgosto.
Daquela criança, que era um menino robusto e saudável, descendeu Julieta, a jovem mais bela do vilarejo. Ela estava apaixonada por Edmond, um rapaz rico e possessivo, que lhe pediu em casamento logo que a viu em um festival de artes, que acontecia todo ano em homenagem ao rei. A vida de príncipe fez com que a cegueira enchesse seus olhos de escamas, e tudo o que ele fazia era regar sua vida com muita bebida, festas e mulheres de várias províncias, sem nunca se preocupar com suas obrigações de sucessor do trono.
Sem ter certeza de qual era o sentimento que conservava por ela, fez um casamento marcante, que foi comentado pelas grandes autoridades, burgueses e plebe dos arredores, por aproximadamente uma semana e meia.
Como era de se esperar, os quatro primeiros meses foram de muito romance, passeios a cavalo, beijos e gestos de amor nos cenários mais lindos daquele lugar. Porém, como tudo o que é bom sempre acaba, as discussões começaram. Muitas delas por coisas simples, irrelevantes. Aos poucos elas foram se tornando freqüentes e cada vez mais agressivas, até o dia em que Edmond, bêbado, chegou em casa depois de uma farra noturna com várias mulheres e bebidas e espancou Julieta, que, num ato de desespero, fugiu pela janela do quarto e correu para a casa de seu pai, que era viúvo há nove anos.
Quando caiu em si e se deu conta da besteira que havia feito, Edmond correu até a casa do pai dela, e bradou pedindo perdão, até que toda a vizinhança acordasse e presenciasse aquela cena humilhante e absurda de um homem bêbado recém abandonado.
É claro que não precisou de muito pra ela perdoar. Disse que tentaria esquecer daquilo e levar a vida dali por diante.
Final feliz. Será? Não! É claro que não.
A surras se tornaram cada vez mais constantes, até o dia em que Julieta conheceu o sapateiro, que morava uma quadra antes da sua, e este passou a tratá-la com muito requinte, fazendo a pobre plebéia, que estava carente, se apaixonar por ele.
Não demorou muito pra ela começar a mentir, e sempre que possível, dar suas “fugidinhas” para encontrar seu amante.
Mas, como tudo o que é bom dura pouco, um dos mais ambiciosos serviçais da monarquia flagrou um dos encontros noturnos, no canto escuro da praça menos movimentada da cidade. Com o intuito de obter lucros, relatou ao príncipe tudo o que havia presenciado, mas não recebeu prêmio algum – apenas o consolo de ouvir Edmond sair do salão resmungando e dizendo que não perdoaria Julieta e queria vingança. Alcoólatra do jeito que era, depois de tomar todas em um festejo que estava acontecendo nos fundos da paróquia da cidade, saiu desnorteado atrás de sua esposa, carregando apenas uma faca de corte recém afiada. Pegou o objeto em cima da mesa onde estavam as carnes do banquete, e ninguém viu ele se afastar do lugar, mediante o som de vozes e músicas.
Chegando em casa, nada avistou, além de um bilhete que dizia “O jantar está dentro do fogão a lenha”. Pegou seu cavalo e saiu a galope até a praça que testemunhava os atos de traição [e que já eram freqüentes]. Desceu do animal completamente fora de si e com seus olhos cheios de raiva, avistando de longe, Julieta e o sapateiro aos beijos. Como que num reflexo imediato, ambos ainda tiveram tempo de vê-lo se aproximar, e tentaram justificar seus atos, sendo o sapateiro, o primeiro a levar um golpe, sendo degolado pela faca que atravessou seu pescoço e fez seus olhos arregalarem sem ao menos poder exprimir sua dor. Depois, estendeu o corpo do pobre homem ao chão e partiu pra cima da adultera, que ainda teve tempo de dizer duas ou três vezes “Perdão!”, até cair agonizando, com um rombo próximo ao abdômen.
Os olhos de Edmond ainda exprimiam frieza, enquanto arrastava Julieta, que estava morta, para cima de cavalo. Galopou como nunca antes, até chegar perto do casebre onde ela morou a vida toda, e atirou o corpo ensangüentado pra dentro do poço. Talvez, o poço fosse a única relíquia da família e a herança de Julieta, a plebéia que agora se preparava para virar comida aos vermes e que seria esquecida em no máximo dois ou três meses pelos vizinhos que a viram crescer, mas nunca deram importância a sua existência.
Edmond novamente subiu em seu cavalo. Galopou para nunca mais ser visto, deixando para trás tudo: O luxo, bens matérias e prestígio. Por toda a província se expandiu a notícia sobre o assassinato, porém nunca se teve notícias ou provas de que Edmond havia assassinado Julieta.
A ela só restava a água suja daquele poço. A podridão e a casa abandonada ao lado. Literalmente ela estava no fundo do poço. Já não era ninguém, a não ser um fantasma que sequer penetrava a mente das pessoas.
Uma vida reles, pobre e ineficaz. Lembranças e simplicidade. Nada dentro de um baú. Tudo estava dentro do poço. Sua memória não seria honrada, pois não havia culpados, apenas vítimas de uma história sem começo, meio e fim.

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